domingo, 21 de junho de 2009

O outro marido



O outro marido
Era conferente da Alfandega - mas isso não tem importancia. Somos todos alguma coisa fora de nós; o eu irredutível nada tem a ver com as classificações profissionais.Pouco importa o que nos avaliem pela casca. Por dentro,sentia-se diferente,capaz de mudar sempre,enquanto a situação exterior e familiar não mudava. Nisso está o espinho do homem: ele muda,os outros não percebem.
Sua mulher não tinha percebido. Era a mesma de 23 amos,quando se casaram(quanto ao íntimo é claro).Por falta de filhos,os dois viveram demasiado perto um do outro,sem derivativo. Tão perto que se desconheciam mutuamente,como um objeto desconhece outro,na mesma prateleira de armário. Santos dóia-se de ser um objeto aos olhos dele? Sim,mas com a diferença de que dona Laurinha não procurava fugir a essa simplificação,nem reparava; era,de fato,objeto. Ele,Santos,sentia-se vivo e desgraçado.
Ao aparecerem nele as primeiras dores, dona Laurinha penalizou-se, mas esse interesse não beneficiou as relações do casal. Santos parecia comprazer-se em estar doente. Não propriamente em queixar-se,mas em alegar que ia mal. A doença era para ele ocupação, emprego suplementar. O médico da alfandega dissera-lhe que certas formas reumáticas levam anos para serem dominadas,exigem adaptação e disciplina. Santos começou a cuidar do corpo como uma planta delicada. E mostrou a dona Laurinha a nevoenta radiografia da coluna vertebral com certo orgulho de estar assim tão afetado.
-Quando você ficar bom...
-Não vou ficar.Tenho doença para o resto da vida.
Para dona Laurinha,a melhor maneira de curar-se é tomar remédio e entregar o caso à alma de padre Eustáquio,que vela por nós.Começou a fatigar-se com a importancia que o reumatismo assumira na vida do marido.E não se amolou muito quando ele anunciou que ia internar-se no hospital Gaffrée Guinle.
-Você não sentirá falta de nada,assegurou-lhe Santos.
Tirei licença com ordenado íntegral.Eu mesmo virei aqui todo começo de mês trazer o dinheiro. O hospital não é prisão.
- Vou visitar você todo domingo,quer?
-É melhor não ir. Eu descanso,você decansa,cada qual no seu canto.
Ela também achou melhor,e nunca foi lá. Pontualmente Santos trazia-lhe o dinheiro da despesa,ficaram até um pouco amigos nessa breve conversa a longos intervalos.Ele chegava e saía curvado,sob a garra do reumatismo que nem melhorava nem matava. A visita não era de todo desagradável,desde que a doença deixará de ser assunto.Ela notou como a vida de hospital pode ser distraída:os internados sabem de tudo cá de fora.
-Pelo rádio - explicou Santos.
Um dia,ela se sentiu tão nova,apesar do tempo e das separações fundamentais,que imaginou uma alteração: por que ele não ficava até o dia seguinte,só essa vez?
-É tarde - respondeu Santos. E ela não entendeu se ele se referia à hora ou a toda a vida passada sem compreensão. É certo que vagamente o compreendia agora,e recebia dele mais que a mesada: uma hora de companhia por mês.
Santos veio um ano,dois,cinco. Cero dia não veio.Dona Laurinha preocupou-se.Não só lhe faziam falta os cruzeiros;ele também fazia. Tmou o ônibus,foi ao hospital pela primeira vez,em alvoroço. Lá ele não era conhecido. Na Alfandega,informaram-lhe que Santos falecera havia quinze dias, a senhora quer o endereço da viúva?
-Sou eu a viúva - disse dona Laurinha,espantada.
O informante olhou-a com incredulidade.Conhecia muito bem a viúva do Santos,dona Crisália,fizera bons piqueniques com o casal na Ilha do Governador. Santos fora seu parceiro de bilhar e de pescaria. Grande praça. Ele era padrinho do filho mais velho de Santos. Deixara três órfãos,coitado.
E tirou da carteira uma foto,um grupo de praia.Lá estavam Santos,muito lépido,sorrindo,a outra mulher,os três garotos.Não havia dúvida:era ele mesmo,seu marido.Contudo,a outra realidade de Santos era tão destacada da sua,que o tornava outro homem,completamente desconhecido,irreconhecível.
-Desculpe,foi engano. A pessoa a que me refiro não é essa - disse dona Laurinha,despedindo-se.
Carlos Drummond de Andrade

4 comentários:

Aproveite esse momento...e use a reflexão das palavras do coração...fique a vontade...e solte o verbo com responsa...